quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Vou reler o Stanislavski, mas ao contrário!





Faz hoje uma semana que iria começar as gravações da nova novela da TVI: "O Beijo do Escorpião". Mas parti uma perna e não cheguei a começar. Todo o trabalho de construção da personagem (leitura intensiva de textos, ensaios, mudança radical de visual), foi interrompido mesmo antes dela nascer.Há quem diga que a culpa é minha que levo demasiado a sério o trabalho e se me dizem PARTE UMA PERNA!, eu parto. 
E assim ficou a meio o trabalho de construção da personagem!  O primeiro pânico foi no momento em que percebi que provavelmente tinha magoado a perna mais do que queria. Estava ainda sem dores físicas e já começava a sentir alguma ansiedade a pensar que teria de faltar ao primeiro dia de gravações por ter torcido o tornozelo. Na realidade eu estava tão preocupada com as gravações no dia seguinte e com tantos nervos a pensar que estaria a prejudicar o trabalho de tanta gente, que só queria ir rapidamente ao hospital para me tratarem e dizerem que era apenas um pequeno entorse. Tudo o que eu queria era acordar no dia seguinte a rir e a dizer: "Susana, lá estás tu a arranjar coisas estranhas para por no teu CV!"
Já agora, pergunto: há pessoas que põe no CV que fizeram casting para este e aquele filme, será que devo escrever que "quase fiz esta personagem"?
As dores intensificaram-se, as físicas e as emocionais. Quando vi o RX percebi que ia ser um transtorno maior. Mas confesso que naquele momento não pensei que fosse o início da Desconstrução Involuntária da minha Personagem (DIP).
Estava tão empenhada nesta "gravidez" que optei pela cirurgia para que fosse uma recuperação muito mais rápida. Expliquei ao médico a natureza do meu trabalho e que precisava que ficasse bem curado e em tempo recorde e ele indicou-me a cirurgia que corrigiria melhor e mais rapidamente a fractura no perónio.- O QUÊ?! Não há uma cura milagrosa tipo futebolista? Aparentemente não.
Implorei para que fosse de imediato e, apesar de já ser 16h, ainda não tinha comido  nem bebido nada desde as 8h o que permitiu que tal acontecesse. As vezes que eu tive sede naquele dia e que não bebi água... Já me ocorreu que esta vida de actriz, que me leva a ter péssimos hábitos de alimentação, é que me safou naquele dia! Tinha estado horas a fazer dobragens e não tinha comido.
Fui operada às 19h. Acordei sem gesso no pé o que me alegrou muito e me fez pensar que seria possível ainda... Isto foi na terça.
Na quarta acordei de madrugada com dores. Dores na perna, claro, mas muitas dores naquele sítio onde nos afeiçoamos às personagens. Era suposto eu estar ansiosa a caminho das gravações para o grande nascimento da personagem e em vez disso, estava numa cama de hospital, ansiosa também, mas com o que o médico iria dizer sobre o meu futuro próximo.
Alguns poderão achar um disparate esta minha comparação. E é! Eu sei que é.Mas eu não sei descrever de outra maneira. 
No dia seguinte recebi a notícia: a lesão era demasiado grande para que a personagem pudesse nascer saudável. Ia nascer coxa, e isso não poderia ser. Não tinha sido escrita assim! Sonhada assim. Eu própria criei um andar para a minha personagem e garanto-vos que não era coxa...
Eu também não a tinha sonhado assim. Mas mesmo que nascesse coxa eu ia amá-la. Ia empenhar-me (talvez ainda mais) para que ela pudesse crescer saudável e ter uma vida normal. "Eu também estou coxa -pensei - eu melhor do que ninguém poderei compreendê-la...."Depois percebi que não era possível, ela ia nascer coxa e para sempre ia ser olhada dessa maneira. E assim preferi ser só eu a coxa. Compreendi, não contestei e aceitei.  E foi então que começou a DIP.
Bom, e agora? Como se desconstroi uma personagem? Ah pois é! 
Hoje faz uma semana que ela não nasceu. Penso menos nela? Sim, mas cada vez que olho ao espelho, é inevitável vê-la. Ela ainda está ali! Eu olho para a porta e pumba! - lá está ela no reflexo do vidro.Vou à janela e pumba! - ela ali está, à transparência, como um fantasma!É caso para dizer: "esta loira mata-me!" - um filme que, aliás, estive a rever num destes dias de pé pro ar! (Vantagem ou desvantagem?)
Sempre que acabo um trabalho e me despeço de uma personagem, sinto que há um laço que se quebra porque nunca mais vou ver esta amiga de tantos dias, com quem criei intimidade (Uma intimidade que vai para além do que aparece em cena e que não vou partilhar!). Mas num processo normal de trabalho prolongado com a mesma personagem como numa novela, à medida que a personagem está mais sólida, a minha identidade vai saindo à rua mais desinibida, até que no fim do projecto a despedida é feita com emoção mas sem dor. 
Não foi o que aconteceu aqui, nem no espectáculo final do curso de teatro na ESTC, em que tinha ensaiado a Electra (minha eterna adiada Electra) e a perdi em circunstâncias muito parecidas. Naquela altura achei que a lesão física não só não me condicionaria como me levaria a ser ainda mais empenhada para ultrapassar as dificuldades. A verdade é que muito antes da estreia eu estava a fazer uma personagem que dava cambalhotas! Mas não podia fazer a minha Electra porque era demasiado arriscado... 
Mal sabia eu que era a escola a preparar-me para o futuro... E mesmo com o conservatório a preparar-me e com mais discernimento e mais 18 anos em cima, uma DIP é sempre dolorosa para mim. Será que devia aprender a ser mais desprendida? A não me envolver tanto? - Nã! Se algum dia eu deixar de me envolver, tirem-me desta profissão!A verdade é que sinto falta do meu antigo eu, antes desta transformação começar. Tenho tantas fotos da minha transformação, que vivi tão intensamente, dedicada e entusiasmada... E agora tenho esta cor de cabelo que não é minha. Sinto que perdi a minha trança e a minha identidade ao mesmo tempo. Mas um actor prescinde (temporariamente) da sua identidade para que outra nasça! Só que a outra não nasceu e fiquei este ser meio híbrido, que não se reconhece ao espelho - é preciso dizer que há penteados que são óptimos quando temos quem nos penteie todas as manhãs, mas que são péssimos quando temos de ficar de cama vários dias.E vocês perguntam: - mas não lavas o cabelo? Não tomas banho? - Sim! Claro! É toda uma aventura para o fazer sem molhar os pontos mas isso talvez partilhe noutro dia.
Mas agora tenho de fazer esta desConstrução. Está na altura de ir À Procura da minha identidade de me concentrar na minha reConstrução, e vou consegui-lo com uma perna atrás das costas: Vou reler Stanislavski mas ao contrário! 

Susana Arrais sofre acidente - Caras.pt
Susana Arrais afastada de «O Beijo do Escorpião» | 
Acidente obriga Susana Arrais a deixar novela – Jornal de Notícias ...mudança radical de visual

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